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sábado, 9 de março de 2013

Dançando no Escuro

Dançando no Escuro (Dancer in the Dark) - 2000. Escrito e Dirigido por Lars von Trier. Direção de Fotografia de Robby Müller. Música Original de Björk. Produzido por Vibeke Windeløv. Zentropa Entertainments, Trust Film Svenska, Film i Väst e Liberator Productions / França | Espanha | Argentina | Dinamarca | Alemanha | Itália | USA | UK | Finlândia | Noruega | Holanda | Suécia | Islândia.


Ambientado nos Estados Unidos em meados do século passado, Dançando no Escuro (2000) retrata o calvário de Selma Jezkova (Björk), uma imigrante do leste europeu que fora para a América em busca de condições para pagar a cirurgia de Gene (Vladica Kostic), seu único filho, que corre o risco de ficar cego caso não seja operado a tempo. Ela é vítima do mesmo mal que o garoto tende a desenvolver, porém, para ela já é tarde demais, sua visão já está seriamente comprometida e seu quadro é irreversível. Apesar disso, ela trabalha à exaustão em uma fábrica para juntar o dinheiro necessário para pagar a cirúrgia. As sucessivas peripécias que acontecem em sua vida começam quando o policial Bill Houston (David Morse), seu senhorio, descobre a quantia que ela guarda no trailer onde mora, ele, que está passando por sérios problemas financeiros, passa a cobiçar o dinheiro que ela juntou com tanta dificuldade. O que se segue a partir de então é uma sucessão de injustiças, que são agravadas pelo fato de Selma ser uma imigrante completamente indefesa em uma país hostil.

O microcosmo retratado pelo filme é uma óbvia alegoria da sociedade americana, Bill e sua esposa Linda (Cara Seymour) são personificações do próprio Tio Sam, através de suas atitudes eles ilustram a hipocrisia e a ganância, características estas que o cineasta, através de seu roteiro, associa ao american way of life. A fábrica onde Selma trabalha é uma representação da crueldade e desumanização do modelo capitalista e os absurdos presentes na trama seriam a prova da falência das instituições legais e das autoridades do país. A trajetória da personagem, retratada no filme de uma forma cruel e sem atenuantes, na qual o melodrama choca mais do que emociona, constitui em si uma contundente crítica à uma organização social que menospreza e não dá voz para o fraco, na qual a xenofobia se sobrepõe ao compadecimento pelo sofrimento alheio. Selma não é vítima apenas das pessoas que se aproveitam de sua condição, mas de todo um sistema, cujos tentáculos estão presentes em cada um dos meios com os quais ela tenta se relacionar.


Diferente de Dogville (2003), filme no qual Lars von Trier esboça uma visão bem mais pessimista acerca do americano médio e de seu modo de vida, Dançando no Escuro retrata também a determinação de algumas pessoas em ajudar a personagem principal, Jeff (Peter Stormare), que é apaixonado por ela, e Kathy (Catherine Deneuve), sua colega de trabalho, são amigos dispostos a ampará-la, porém suas boas vontades se mostram incapazes diante da irracionalidade da sociedade da qual fazem parte. No comportamento de Gene é possível perceber uma influência negativa da cultura americana, diferente da mãe, ele se torna materialista e valoriza mais os bens que pode possuir do que as experiências autênticas, que sua progenitora tanto busca, em dado momento da história ele se queixa de que todos os seus colegas da escola têm uma bicicleta e ele não,ele acredita que este fato por si só possa justificar a cobiça que ele começa a alimentar. 


Selma é apaixonada pelos musicais clássicos de Hollywood, neles ela encontra uma espécie de refúgio, onde as dores de sua realidade não podem alcançá-la. Nas poucas horas vagas que tem, ela se desdobra para cuidar do filho e da casa e ainda arruma tempo para ir ao cinema e participar de ensaios de uma remontagem da peça A Noviça Rebelde. Em diversos momentos, ela se imagina dentro de um filme, isso acontece mesmo quando ela está na barulhenta linha de produção da fábrica onde trabalha. Por alguns minutos sua realidade se torna menos angustiante, apesar de ainda ser dolorosa, o que fica evidente no misto de melancolia e libertação, que emana de cada uma das canções que ela interpreta nestes momentos de quimera. Tais sequências musicais são fotografadas com cores mais vivas, que contrastam com os tons desbotados que predominam nas outras passagens, tal efeito nos dá a percepção de que são nestes momentos que a personagem se sente viva de verdade. Curiosamente, ela passa a enxergar quando se vê dentro de um de seus devaneios.


As canções interpretadas nestes números musicais foram compostas pela própria Björk, cada uma delas parece desnudar a alma da personagem, expondo não só a sua intensa dor, mas também a esperança que a mantém firme, mesmo em meio às adversidades. O desempenho da cantora é uma das mais gratas surpresas do filme, ela está formidável, a grandeza de sua atuação pode ser notada na intensidade com que interpreta cada uma das canções (o que não é novidade para quem já conhece a sua obra musical) e pela sua total entrega à personagem, o que chega a ser assustador em alguns momentos. Todos os sentimentos experimentados pela protagonista são interpretados de uma maneira impactante e ao mesmo tempo natural, que parece verossímil mesmo sendo parte de um contexto que não deixa de ser caricato e alegórico.


Os traços característicos da marca autoral de Lars von Trier estão presentes na trama e no minimalismo dos recursos técnicos utilizados, o que remonta à algumas das regras que marcaram o controverso movimento Dogma 95, que ele ajudou a criar em meados dos anos 90. A câmera de mão instável, operada pelo próprio cineasta e a despreocupação com valores puramente estéticos são traços do movimento que foram mantidos no filme (seus trabalhos mais recentes já denotam uma ruptura com tais preceitos). Dançando no Escuro foi todo filmado com uma câmera digital e com relativamente poucos recursos tecnológicos. Ao conceber sua obra de tal forma, Lars cria um interessante contraponto com os musicais clássicos, nos quais frequentemente a forma se sobrepunha ao conteúdo (o que deixa a dúvida se o que ele faz é prestar uma homenagem ou tecer uma crítica ao formato). Se os filmes de outrora ofereciam para seus espectadores uma forma de escapismo (o que Selma tanto valoriza na trama), o roteiro de Lars vai na contramão. Apesar de alegórico, ele nos coloca em contato é com uma realidade que não está tão distante da nossa e é isso que o torna tão indigesto.


Dançando no Escuro não é um filme indicado para aqueles que valorizam tramas reconfortantes e inofensivas, os que buscam um feel good movie sobre superação devem passar o mais longe possível dele. Muitos desavisados tiveram suas expectativas frustradas e o consideraram angustiante, depressivo e até mesmo agressivo, eu, no entanto, acredito que sua grandiosidade artística esteja justamente na intensidade daquilo que ele desperta em nós espectadores, sejam estes sentimentos e sensações positivos ou não. O que ele nos proporciona não é uma sensação artificial e passageira (típica das produções hollywoodianas), mas sim uma reflexão profunda e necessária, acerca das distorções éticas e legais de um sistema composto por leis, costumes e valores que não nos são de todo estranhos... Dizer que se trata de mais uma obra-prima do polêmico diretor dinamarquês é chover no molhado - Ultra recomendado para aqueles que buscam a intensidade das emoções genuínas e se entregam a elas sem medo! 


Dançando no Escuro foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Canção (I've Seen It All) e no Globo de Ouro nas de Melhor Canção (I've Seen It All) e Melhor Atriz em um Filme de Drama (Björk).

Assistam ao trailer de Dançando no Escuro no You Tube, cliquem AQUI !

Confiram também aqui no Sublime Irrealidade as resenhas críticas de
Anticristo e Melancolia, também escritos e dirigidos por Lars von Trier!

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra, 

10 comentários:

  1. Oi Bruno,

    Tudo bem? Parabéns pela critica! Assisti esse filme há muitos anos atrás e se bem recordo a sensação foi voltada a fragmentação das relações, além da discussão de uma cultura que advoga a competitividade. A direção de de Lars Von Trier consegui não deixar o filme com clichés,

    Beijos.

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  2. Von Trier é um diretor forte, ainda não vi Dançando no Escuro, mas se critica os valores capitalistas certamente irei gostar.

    Belo Texto! Abraço!

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    1. Anticristo já viu? Excelente filme, denso, pesado, triste e por vezes faz com o telespectador acabe se inserindo na história e sentindo todo aquele emaranhado de sensações.

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  3. Eu simplesmente não consigo definir com as palavras corretas o quanto sou apaixonado por este filme. É de fato o meu musical favorito juntamente "Cantando na Chuva" e "A Noviça Rebelde", pois suas músicas, a trama, a protagonista, conseguem com as maiores das paixões transmitir o máximo de emoção ao espectador. As letras de Björk e Lars são todas belíssimas e caminham entre o cerne de crítica de cinismo e o amor puro e também fantasioso da personagem, e o que se sobressai, sobretudo, é que em um mundo monstruoso como este, o cineasta consegue nos apresentar uma figura de coração belo e desprovido de qualquer resquíciode maldade que, mesmo com sangue nas mãos, isto ainda não a desmerece como a maior das maiores mulheres do cinema. E neste raciocínio, confesso, sempre carrego o hábito de assistir no youtube os vídeos das cenas musicais dessa obra-prima. haha

    Por sua vez, seu texto está belíssimo e convincente por analisar estes aspectos junto ao cunho de crítica social às também leis fragilizadas do país. Também escrevi um texto sobre o filme no ano passado escrevi, quando o vi pela primeira vez. Se puder ler, fica a dica. E parabéns pela redação. Abraço.

    http://www.leituradecinema.com.br/2012/10/dancando-no-escuro.html

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  4. Olá, José Bruno.
    Ainda não assisti a nenhum filme de Lars von Trier e do jeito que ando meio entediado com o cinema hollywoodiano padrão, creio que seria uma boa eu tentar assistir a algum filme dele.
    Abraço.

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  5. crítica perfeita. é exatamente isso. congratulações.

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  6. crítica perfeita, só um errinho: a Björk não é da República Tcheca, e sim da Islândia ;)

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  7. Chocantemente maravilhoso, o filme revolve todo nosso ser em busca de nós mesmos, e as injustiças que por ventura fizemos ou possamos ter feito um dia. Lindo, sensível e até mesmo angustiante, mas que tem sua razão de ser. Poderia continuar,mas não encontro palavras...até mesmo porque as lágrimas me impedem de prosseguir. Filme para pessoas que não tem preguiça nem medo de pensar e se emocionar.

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